Jazia junto de mim uma coroa de flores. Quais flores já não me recordo, mas eram amarelas. A família espezinhava a terra mole acabada de lançar. Eu apenas assistia ao espetáculo triste de fingimento. Em vida ninguém me ligava. Ninguém era capaz de me mandar uma mensagem nos anos ou de me cumprimentar na rua. Agora todos pensam que se importam. Até podem estar certos, mas não é um sentimento mútuo. Respeito mais quem ficou a dormir naquela manhã do que quem se quis enganar a si próprio e apanhou frio para me ir ver fazer o último desporto radical da vida, o salto para a cova.
Não vale a pena estar a pensar muito nisso. Já passaram sete anos desde a minha última cerimónia religiosa. Fui escapando de muitas em vida, mas desta vez não consegui dar uma boa desculpa. Ainda pensei que se arranjasse uma dor de barriga ou um toque no carro ao sair do estacionamento me safava. Não deu. Mas pelo lado positivo, não vai haver uma próxima. Posso passar a eternidade sem ir mais vez nenhuma à missa. Nem à missa nem a lado nenhum. Não sei se perceberam, mas estou morto. Era óbvio acho eu. Devem ter desconfiado logo na primeira frase. Senão, a meio do primeiro parágrafo já sentiam que tinham descoberto alguma coisa. E ainda bem, foi para isso que o escrevi. Para vocês, vivos, tem alguma coisa de caricato ler sobre quem já morreu. Mais ainda sobre quem já morreu e escreve sobre o seu funeral. Mais ainda, espero, sobre quem morreu e escreve sobre escrever sobre estar morto.
Adiante. Não vos venho contar como morri, vão ter de viver sem isso. Mas não se apoquentem, não é pior do que a causa da minha morte mas talvez seja melhor que a minha vida. Também não vou falar da minha vida. Nem vale a pena tentarem perceber como era, o que fazia, de quem gostava, do que comia, de como dormia, que nomes chamava aos gatos da minha rua. Ficam a saber que tinha gatos na minha rua. Pelo menos dois. Não vou por aí também. Vou em vez disso falar-vos sobre estar morto. E há tanto para contar.
Não tem cor nem paladar. Não faz lembrar o baloiço de infância. Não dá para descrever com adjectivos. Não dá para grande coisa na verdade. Falar da morte é falar do nenúfar que aparecia nas lições da escola. É uma planta que cresce na água e floresce mas que nunca se viu ao vivo. É um mito que não duvidamos. Garantimos que existe mas é mais inalcançável que as plantas carnívoras, essas ainda aparecem nas bancas das feiras populares, inertes e que só mexem quando nos vamos deitar e não olhamos para elas, tais bonecos do Toy Story. Mas existem. Os nenúfares também, mas não os vemos. E vamos pela primeira vez a uma fonte ou a um lago. Procuramos por eles mas só tem musgo. Uma flor aparece a boiar mas é caída de um ramo, veio de longe, não nasceu ali. Pensamos que vamos vê-los um dia, aos nenúfares. E se tiverem um sapo neles repousado, melhor. Um daqueles que nos cega se nos mijar para os olhos.
Tenho assim o desígnio cumprido. Nunca acreditei. Os avanços na tecnologia ou a imortalidade quântica estariam lá para me resgatar. Não estavam. E ainda bem que não estavam. O que seria de mim sem isto? Sem este nada que me cobre como um lençol polar no verão. É só uma parte de um desconforto crónico que passa bem por ser o todo. Só parece, não é mesmo.
E o que me resta então sem ser ditar? Não tenho boca nem caneta para declamar. Então dito para o éter escrever. Só é pena ele não existir. Mas se existisse! Seria óptimo ter o universo como mordomo, uma malha de estrelas a dactilografar a minha senda. Os buracos negros são as tosses inesperadas, as supernovas os laivos de saudade, os asteróides o fechar dos olhos para lembrar uma palavra mais recondita. E os planetas, daqueles com vida, como o nosso, a pontuação estranha que nunca se dá como certa.
Curiosamente não perdi tudo. Ainda oiço ao longe o mar. Não é o mar mesmo, aquele que adormece a apatia, é o mar da água da banheira. Aquele que traz os barulhos dos tachos dos vizinhos, dos adeptos ruidosos do café da esquina, do telejornal da sala a dar desgraças. Sons que se amplificam na água turva e tépida e desaguam num golfinho ou numa civilização já extinta. Mais que marés, são ideias e memórias do que nunca chegou a ser mesmo. É só isso que me fica, o que nunca foi mesmo.
Pensava que ia ficar com o olfato para me ligar ao que era em vida. Era muito real e pouco dado a ilusões. As ondas sonoras põem-se mais a jeito para serem mal interpretadas. E que bom que era a mal interpretar. Fazia disso vida, em vida. Agora já não.
Fico curioso para saber se estão com curiosidade sobre o que fazia em vivo. Como disse que não ia contar, não conto. Também não vou ser daqueles que no início diz que não vai falar mas depois fica sem ideias sobre o que contar a seguir e quebra a promessa. Tenho desculpa, tenham pena do defunto que não se pode defender. Se sentem pena por velhos moribundos, tenham mais minha que não tive oportunidade de jogar bingo num lar. Se tivesse tido, gostaria de usar, para marcar os números, um marcador grosso amarelo fluorescente, daqueles com o bico meio cortado. Sempre lhes achei piada. Era da maneira que os outros velhos não viam o que estava a marcar, não tem contraste suficiente para olhos com cataratas. As cataratas influenciam o contraste? Nem sei, não cheguei a ter idade suficiente para saber isso.
Fico curioso para saber como era se tivesse morrido velho. Era isto igual? Isto, digo este papel ou ecrã ou qualquer outra plataforma que se imcumbe de carregar estas letras, com as letras incluidas. Acho que sim. Talvez não fosse a morte um nenúfar, mas um lince ibérico ou um dois cavalos. A ideia está lá, o sentido é que não.
Que mais haveria por dizer. Não vos quero maçar com mais coisas destas. Aproveitem praí a vida e o estar acordado ou o que é. Vão ver que se gostam de dormir nem vão notar a diferença.