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Candonga

Mercado negro de ideias da minha cabeça.

Candonga

Mercado negro de ideias da minha cabeça.

13 de Janeiro, 2022

O Dia

Bruno Gouveia

Entrada

Depois da luta contra o manípulo da cadeirinha do bebê no carro, chegámos ao hospital. Os corredores são como caixas de bolachas, com pés-direitos minúsculos. Médicos e enfermeiros tomavam cafés nos corredores. No bloco de partos encontrámos uma parede repleta de nomes e divertimo-nos a procurar os nossos como se fosse uma sopa de letras. Descobrimos que tem repetidos. A minha namorada foi chamada. Pouco depois veio uma enfermeira e pediu-me o boletim da grávida que se encontrava perdido algures num dos 2000 bolsos que tem a mochilinha do bebé. Se pensava que as malas das senhoras eram autênticos buracos negros, as mochilas de bebés são inspectores gadget de arrumação.

Já estamos no quarto para o parto há umas horas. A dilatação avançou bem. Sinto-me noutra realidade. Não consigo lembrar-me de todos os detalhes mas sei que atar a bata atrás das costas foi um desafio. Isso e arrumar as tralhas no cacifo. Não sou dado a arrumações e sempre que é preciso ir buscar alguma coisa ou arrumar outra vejo-me às aranhas com tantas malas e bolsos.

Agora ela descansa e o alarmezito tá sempre a apitar. Cada toque que aquilo dá é um aperto no peito de ansiedade, de pensar que alguma coisa está a correr mal. Eles deviam mudar o barulho das maquinetas, por uns soundbites dos apanhados ou coisa do gênero, para a malta relaxar um bocado.

 

Saída

Já está cá fora. Depois de muitos tremores, muitos barulhos da máquina, muita gente a ir e a vir e uma falsa partida, saiu. É lindo o raio do moço. Parecia um alienígena a sair com a cabeça toda espetada mas depois ficou a pessoa mais linda do mundo. A minha namorada foi Super Guerreira do empurranço. E agora o miúdo está a mamar. Campeão. Toda a gente foi incrível connosco. Sempre com muito sentido de humor, piadas para aqui e para ali. 10/10 



Foi-me a cabeça. Estou com cocó e não consigo fazer porque não tenho a certeza que a porta da casa de banho dos homens tranca. Só fiz metade. Mas já mudamos uma fralda e foi incrível ser mijado em cima. O moço é bastante tranquilo. É difícil de pôr a mamar mas quando pega dá tudo. Sinto-me exausto, mais do que a mãe. Por mais amáveis e prestáveis que as pessoas do hospital sejam, sinto-me sempre num ambiente inóspito. Mas só não me sinto assim em casa, por isso tenho de aguentar. A Marta está bem também, nem acusa cansaço.

Fiquei a pensar na mensagem que o meu pai me enviou. Disse-me que agora já sei o que é amor de pai. E eu levei muito a mal. O primeiro reflexo foi pensar que ele não teve amor por mim, que ele não sabe o que é isso. Agora reflito que posso estar a ser injusto. Por pior pessoa que tenha sido com a minha mãe, e foi porque a vi durante os anos a chorar quando ele ligava e ela percebia que não ia deixar a outra família dele. E eu abraçava-me a ela sem perceber o que se passava enquanto ela engolia os sentimentos e me criava. Mas ele aparecia ás vezes. Ia-me buscar à escola e a lanchar marisco. Foi connosco à praia quando eu era mesmo chavalinho. Levava-me a ver os aviões no aeródromo de Viseu e as rotundas enfeitadas no Natal. E dava um cheque de 60 contos por mês à minha mãe para me criar. Deu-me mesada na faculdade, lavou-me o carro de borla no self-service dele. Para acabar em beleza, hipotecou a casa que me ofereceu para crescer com a minha mãe e não a conseguiu pagar. Parece que este acto levantou todos os ódios adormecidos que sentia e fiquei ainda mais distante. Ele também, acho eu. Percebeu o que fez. Não se lembra de aniversários, sempre teve um pouco de dificuldade em saber que idade tinha, mesmo em miúdo. Deixou de insistir tanto, e eu de fazer o esforço de atender. Conversas cada vez mais curtas. Um desgosto a fermentar. Até hoje que sou pai. E que sei que não quero ser como ele, que sem esforço eu sou melhor e vou-me esforçar para nem haver comparações com a paternidade dele. Não vou abandoná-lo. Sim, abandono é o que sinto. Por mais gestos bons que ele acha que teve comigo, nunca foi meu Pai. Nunca fez por perceber os meus gostos e desiludia-se quando não ligava pivete à bola, nem à caça, nem a fazer desporto. Fui uma desilusão e ele em dobro.